sábado, junho 03, 2006

 

Como ter sucesso em 14 passos:

1. A primeira coisa que o jovem superstar deve fazer é estagiar no estrangeiro, e quanto mais longe melhor, pois se há coisa que sabemos dos portugueses é que têm um fascínio sobre o espírito aventureiro que faz as pessoas irem para o outro lado do mundo... fazer exactamente o mesmo que se faz por aqui (mas quem precisa de saber isto?). A outra possibilidade é ingressar num atelier "superstar", cuja quantidade de mediatização deverá respeitar a relação de proporcionalidade invertida com a distância.

2. Conseguido e suado o estágio no tal atelier "superstar", nunca admitir que se fez mapa de vãos em todo o ano que por lá se esteve. Se por acaso se teve a sorte de realmente desenhar alguma coisa, nunca admitir que não se teve liberdade criativa, mas que foi uma "honra" e "prazer" trabalhar no mesmo espaço que a estrela. Dar sempre a sensação de que se falou todos os dias com a estrela, de que se imbuiu totalmente do espírito, inteligência e todos os outros elementos que fizeram do atelier escolhido um fenómeno de sucesso.

3. Regressar a Portugal com um olhar triunfante e mordaz de quem esteve com os melhores e que não se importa muito de partilhar a sua sabedoria conquistada com os indígenas.

4. Ler coisas francesas (nunca americanas!). Importante conhecer os mais ilustres, especialmente os ilegíveis (Gilles e Deleuze, por exemplo) mas mais importante ainda é descobrir coisas inéditas e desconhecidas pelos outros, e portanto exóticas. Discutir conceitos obscuros como "deslocação conceptual" ou "elementos maquínicos" em contextos não relacionados de modo a baralhar e confundir o outro, ao mesmo tempo que invoca o problema actual da descontextualização geral. Introduzir a expressão "muito interessante..." de vez em quando no discurso, fazendo com que o interlocutor, que até ali não percebeu nada (o que de algum modo diz da sua boa inteligência) se admire de quantos assuntos lhe passam ao lado por ser pouco intelectual.

5. Conseguir abrir e sedimentar um atelier economicamente. Basicamente, ter amigos com dinheiro dispostos a aturar os erros de principiante.

6. Conseguir dar estatuto arquitectónico ao atelier. Basicamente convencer as revistas de estarem perante um case-study "muito interessante" (lá vem a expressão outra vez) ou perante uma arquitectura "emergente" (que pareça responder às preocupações arquitectónicas no seu zeitgeist). O exemplo de hoje é a expressão "Bio-Climática": sucesso garantido.

7. Convencer o cliente de que a oportunidade de contribuir para a "investigação" arquitectónica é importantíssima para o sector, e que para isso é necessário uma "mente aberta" à criatividade do arquitecto, assim como é óbvio, pilim. Se o cliente perceber que não passa de uma estratégia de marketing do atelier para parecer original (e portanto "muito interessante") não importa muito, pois a sua inteligência também há de perceber que a sua casa será alvo de publicidade também, e consequente status social, último grito, é fash. (olha tenho uma casa dos Mateus! Olha e eu do Siza! Siza? Esse já está ultrapassado, pá! Quem está a dar é o Souto!)

8. Conseguindo um mercado estável de vivendazinhas para novos-ricos e de recuperaçõezinhas (também na moda) para os velhos-ricos, é altura de arriscar concorrer num concursozeco público e esperar que o vencedor não esteja já pré-escolhido. Tendo essa sorte, das duas uma: ou se vence o concurso e portanto deve-se usar o material o máximo possível para publicidade do atelier, ou se o perde, explorando ao máximo o projecto em revistas que se interessem por casos perdidos.

9. Explorar os empregados, convencendo-os de que não são realmente empregados, mas sim estagiários. Para toda a vida, se possível.

10. Dar entrevistas aos média (compostos pelos amigos). Dizer barbaridades como proclamar-se contra as vivendas porque são anti-urbanas (enquanto se fazem doze ou treze no atelier), escrever livros sobre os problemas emergentes e as belezas efémeras arquitectónicas. Falar dos franceses. Pintar quadros abstractos: ficam sempre bem e nunca se pode acusar o autor de pobreza cultural. Além de que adicionam o arquiteco ao "círculo" de artistas. Sempre conveniente.

11. Ir a conferências. O assunto deve ser o mais "emergente" possível. Depois de perceber que a platéia contém pessoas influentes, colocar questões "muito interessantes" de modo audível para que todos percebam. Não exactamente a pergunta, mas quem a fez.

12. Fazer projectos como se estivessemos no quinto ano da faculdade: oníricos. Pouco importa a sua validade e objectividade. Uso e abuso de conceitos exteriores à experiência arquitectónica como fundamentos da forma. Quanto mais bizarros e "emergentes" melhor.

13. Ganhar suficiente importância e influência política para já não necessitar de "ganhar" concursos. Isso é para wannabes. Mas se vos oferecerem concursos "virtuais", aceitem-nos, desde que seja garantida a vossa vitória no final. Apesar de tudo, as ideias alheias até poderão ser úteis de alguma maneira ao objecto final.

14. Receber prémios. Importantíssimo. Para isto é preciso estar na graça das revistas arquitectónicas durante anos e para isto é necessário garantir todos os passos 1-13 durante décadas a fio. É só para artistas! Sentem-se preparados?

Comments:
Oi pessoal, muito bom o blog de vocês. Gostei e voltarei mais vezes. Abraços
 
Uau! Se tiveres um atelier diz que eu vou lá estagiar a limpar o pó. Só dá mesmo párquitectos?
 
Olá barba rija,
Se a "gente" nem sempre se entende, porque é que desta vez, haveria de ser diferente? :)
Em parte concordo com todas as palavras da tua posta. Também tenho batido nos mesmos "ceguinhos". (Vê nos arquivos...).
Por outro lado, acho que a questão é um pouco mais complexa... que merece um olhar menos "complexado" e caricatural.
... e isto tanto é uma crítica, como uma autocrítica.
... o início (o exercício) da profissão não deve ser fácil para (quase) ninguém.
Concordo particularmente, e ainda bem que o escreves, com a “insanável” contradição entre o discurso “Pró-Cidade” e as "moradias", dos, por exemplo, MGD+EJV, para o Bom-Sucesso, mas isso em nada diminui, a minha admiração pelas suas obras, que a vida não está fácil para ninguém e umas moradias (bem pagas) são sempre coisa muito apetecível!
Quanto aos (intelectuais) franceses e à “pintura abstracta”… estão “out”! Mas eu, não só não sei o que é que está a dar (o que é que está na moda), como, e ainda que o soubesse, não o escreveria... para não ficar desactualizado a partir de amanhã! :)
As questões (risíveis) que levantas, são importantes, e muitas das vezes, serão mesmo imprescindíveis à compreensão do estado das coisas, mas em última analise mais do que discutir o “modo”, deveríamos (proponho eu) analisar os “resultados” de tal “obra”.
Até porque com os mesmos 14 passos... há “bom” e “mau”. E é por aí que nós também não concordamos...
 
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