sexta-feira, maio 26, 2006

 

São as coberturas horizontais, estúpido!


De todos os caprichos arquitectónicos que resistiram do modernismo, este é aquele que me mais intriga, a mania das coberturas horizontais. A primeira conversa habitual entre um cliente e um arquitecto há sempre de parar na questão dos telhados. "...mas oiça arquitecto, não me meta daqueles terraços horizontais que aquilo é horrível e deixa entrar água! Porque não um telhadinho com um friso bonito e tal? ...", e é então que o arquitecto explica que a cobertura horizontal faz parte de um estilo "moderno" de vida, de vivência espacial, em que os planos se individualizam e se extendem desde o interior até ao exterior, criam continuidades espaciais, que é aquilo que se faz hoje em dia, etc. O cliente insiste, "ah, mas o telhado é tão bonito..." e assim o arquitecto cabisbaixo acede, com a condição de o telhado ter apenas uma água, para assim se manter, mas não já com a pureza da ortogonalidade, a tal individualidade dos planos que se extendem...

Mas aquilo que me fascina mais nesta conversa é que ela é praticamente universal, sendo que os arquitectos que concebem casas com telhados tradicionais são segregados (epa, o estágio nem foi grande coisa, só fazer casas com telhados, vejam só...), e apenas como excepções excêntricas são tidas em conta nas revistas de arquitectura. Isto faz-me pensar que existe de facto um tabu em relação aos telhados, e uso os telhados como o símbolo mais visível de todos os outros caprichos modernos, derivado da imagem mítica modernista, mas que carece de uma explicação razoável do porquê, além de ser "moderno". É que o argumento, não sei se repararam, é oco. Até hoje, é bem sabido que o telhadinho vermelho é o melhor sistema construtivo de coberturas engendrado.

Este tipo de linguagem, surgida na mais pura abstracção do que é o "espaço", não entendido como um lugar, com centros, com símbolos, com histórias, mas sim descartiano, X,Y,Z, ou seja, sem relação com o mundo real, inseriu-se na cultura académica dos arquitectos como uma injecção, pese embora os esforços do pós-modernismo em acabar com esse dogma.

Neste aspecto, aprecio os grandes arquitectos, pois esses nunca negam seja o que for, e se for necessário usar telhados, pois seja, e farão das obrigatoriedades elementos maravilhosos de arte, vejam só as casas do Siza (para mim das melhores) que se fizeram na sua meia carreira, vejam as construções do Távora, vejam o caso do Steven Holl, Aldo Rossi, etc. No entanto, para a actual inteligentsia arquitectónica, o uso do telhado é sobretudo uma ironia, no caso dos Mateus, ou dos MVRDV, por exemplo, e para mim a ironia é apenas sinal de que o desejo do novo combinado com o desejo do melhor não consegue encontrar resposta mais verdadeira que o óbvio e tradicional, e então escarne-se, ironiza-se, nega-se afirmando.

(ah, estiveste tão próximo, Siza Vieira, porque te foste embora? E os teus filhos são uma sombra...)

Para quando a libertação dos fantasmas da arquitectura? Para quando o início do uso das coisas singelas mas sólidas, brutas mas verdadeiras, tão ridículas como o amor? Um dia hei de desenhar uma casa assim.

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está comentada n' odesproposito
 
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