quarta-feira, maio 03, 2006

 

A religião na arquitectura

Antes de mais nada, um aviso. Não, meu caro leitor, não o vou importunar com um texto sobre os edifícios religiosos, ou sobre o modo como a luz cai daquela parede e escorrega pela madeira, ou pedra, ou então como a areia efémera do terreiro de um mosteiro se confronta com a perenidade do corpo maciço do mesmo, ou assim.

Não. O que gostaria de partilhar convosco é uma sensação crescente que tenho de que a arquitectura é algo que é possível psico-analisar. Que todos os traços arquitectónicos, quando expressos com alguma coragem e intenção, são o resultado de um "subconsciente" em acção, palavras que são ditas no silêncio das formas construídas.

Não me tomem por parvo. Sei que o parágrafo anterior parece apenas dizer uma banalidade. Mas o que proponho é que o tomem a sério até aos pormenores construtivos de qualquer casa, e comecem a pensar no que é que qualquer forma quer realmente expressar, segundo uma metodologia quase psico-analítica. Deitemo-nos no divã Freudiano e ouçamos com atenção os edifícios que nos rodeiam, mas nunca sem deixar de parte a ironia da convocação de um provado místificador e exagerado como é Freud e a sua "psico-análise" tantas vezes apontada como sendo uma ciência que apenas se auto-evidencia (cria as suas próprias provas).





Dificuldades psicológicas à parte, apresento-vos um pensamento que me surgiu hoje à tarde: os edifícios modernistas "à Siza", ou "à Adolf Loos" ou "à Corbusier", são, parecem-me, ateus. E por uma única razão: o desaparecimento do telhado, do seu sótão e do correspondente friso, do tecto que nos protegia do céu! Acompanhem-me vocês por favor, que hoje já percebi que a qualidade da minha escrita não o tenciona fazer. A ideia é que quando se opta por fazer desaparecer por completo as ordens clássicas da base, fuste e capitel na arquitectura (embasamento, corpo, cobertura), claramente se expressa o poder absoluto do Homem sobre não só a sua vida como também à natureza e até a deus, que morreu faz tempo.

A base, que nos separa do chão, da terra (da imundície, do lamaçal, da animalidade, mas também da fertilidade) e a cobertura, que nos protege da fúria dos céus (dos deuses, da perfeição, da soberba de Ícaro, do terror do infinito, mas que nos faz sonhar) foram desdenhadas em função de uma perfeição terrena, diria que de doutrina marxista, e de uma arrogância absoluta do Homem face ao que o rodeia. Não admira que tais edifícios pareçam caixas de fósforos, não só metafóricamente mas também no seu comportamento, envelhecendo demasiadamente rápido. Esqueceram-se de uma das máximas de Vitrúvio: Firmitas!

Por outro lado, notem-se também as ginásticas enormíssimas que os arquitectos fazem em termos de projecto de execução de modo a que por fora o objecto pareça o mais perfeito e simples possível, autónomo e fácil. No seu miolo é um autêntico puzzle construtivo e nem sempre concebido ou construído da melhor maneira. É no fundo uma "fachada" que exterioriza uma força de personalidade que não passa de uma ilusão, de uma personalidade que diz "eu consigo fazer isto, não preciso de mais nada, apenas de um plano branco, vês?", escondendo por detrás todos os seus elásticos pré-esforçados numa luta incomportável e solitária contra Chronos. Uma tragédia grega sem deuses. Um enorme vazio.

E reparem também como dessa melancolia nasce uma arquitectura selvagem, de modo que até blogs inteligentes vizinhos do nosso se insurgem contra a mais essencial característica da arquitectura: a sua forma!


Comments:
Brilhante! Parabéns pelo texto e pelo blog. Concordo com o que dizes. A forma arquitectónica reduzida ao mínimo geométrico é de uma presunção demiúrgica, na sua pureza abstracta, despojada e minimalista que só pode ser concebida por alguém que se declara emancipado da tutela divina, autónomo na sua aspiração historicista. No entanto, essa presunção esquece que a abstracção pura é irmã gémea da metafísica e, por isso, o ateísmo soviético baniu ambos. Malevich foi banido pela mesma razão que os ícones. O risco do racionalismo ateu, ascético e essencialista, é o niilismo, representado no quadrado negro de Malevich, pois que a metafísica é negada. Para evitar o niilismo absurdo optam pela exteriorização daquilo a que tu chamas, e muito bem, «ginásticas enormíssimas». Ou seja, o materialismo historicista de base racional, no seu ateísmo militante, que encaram como libertador do génio humano, é ameaçado pelo niilismo geometrizante que conduz a um beco sem saída, o quadrado perfeito. Para evitar isto, opta-se por um jogo de ilusão em que a simplicidade aparente da forma exterior dissimula uma complexidade oculta. Quer dizer, ao recusar a separação entre o aquém e o Além metafísico, acabam por engendrar uma separação entre o interior e o exterior, entre a essência e a aparência. Desculpa isto estar muito rebuscado. Mas foi uma reflexão algo improvisada. Thks. Aparece lá no Tapor.
 
Pá, vi uma chamada no tapornumporco para o teu blog a dizer que valia apena. E vale, chapeau! Este teu post tá muito bom, dá que pensar. Embora não seja nada, mesmo nada, clara a ligação que estabeleces no final entre a arquitectura do siza e afins e o gugenheim do gehry que me parecem radicalmente opostos.
Numb (www.tapornumporco.blogspot.com)
 
obrigado pela vossa atenção e pelos vossos comentários! são sempre bem vindos! Desculpem eu ter impedido o comentário instantâneo mas estava a ser importunado por uma série de bots bastante desagradáveis no meio das conversas comentadas.

Em relação ao que dizes, adropov, foi bastante aprofundado e nada rebuscado. Vejo que tenho ainda bastante a aprender sobre a Metafísica (não conheço Kant muito bem, por exemplo) e sobre as recusas do comunismo a Malevitch. Embora estas pareçam-me bastante óbvias: Malevitch nos seus quadros expressa uma admiração pela beleza e pela estética do absoluto, coisa impensável nas cabecinhas moderno-brutalistas dos senhores comunistas, mais interessados na ciência e na borucracia.

Sobre a passagem para o último parágrafo, já era um pouco tarde e tive de resumir. Neste caso talvez tenha resumido demais. É um pouco forçado admito, mas é precisamente o exagerado fascínio da beleza perfeita do minimalismo que gera o seu anti-ego, o exagerado fascínio pelo rebuscado, desordenado, fluído, ruidoso, barroco movimento. É que o pós-modernismo andou bastante entre estes dois extremos.

... e entre essa batalha talvez se tenha perdido um pouco a noção das coisas, aquilo a que geralmente se chama "bom senso".
 
uma curiosidade... e só respondem se quiserem (como é obvio), são alunos de que ano?
 
é pá o comentário que ia deixar desapareceu... ou será que não?
era para perguntar (e só respondem se quiserem, como é obvio) em que ano é que estão?
 
Para responder ao caro leitor, o senhor ptolomeu acaba este ano o 5º, e eu o 6º denominado de "estágio", mas mais conhecido como "escravidão de encher chouriços e sorrir como se estivessemos a fazer a arquitectura mais linda do universo".
 
boa sorte!

... e prepare-se para financiar a vida do seu filho durante as primeiras duas décadas... após o início do curso!
 
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