domingo, maio 14, 2006

 

Modernismo e Tradição



Deparei-me com um debate com mais de uma década entre os excelentíssimos Peter Eisenmann e Leon Krier. Personagens antagónicos, paradoxais, que defendem ideias completamente díspares. Enquanto que o primeiro defende uma tradição de inovação, de rasgar a superfície do mundo e encontrar novas formas para a “presentidade”, o hoje, o segundo defende que essas formas já estão encontradas e que é no seio da tradição que se vai buscar as soluções aos nossos problemas, invocando ainda a preferência da população que recai sobre os edifícios tradicionais, cidade tradicional, ao invés da modernista, fria, calculista e vazia.

Como discordar do que cada um diz? E no entanto, o que eles dizem é paradoxalmente verdadeiro e diferente, contraditório mesmo. Quando me lembro das minhas conversas com pessoas não-arquitectas, dizem-me sempre que Marco de Canavezes é quase um quartel de bombeiros e que casas à caixa de fósforos não são casas, e depois dizem-me que gostam de telhadinhos, rocócós, decorações e etc. Mas eu não penso da mesma maneira, e não, não é só uma questão de gosto. E depois considero: até que ponto não fui eu próprio “formatado” pelo discurso que me deram na faculdade, até que ponto não entrei eu numa cultura diferente das “pessoas normais”, dando primazia a critérios completamente diferentes dos que tinha antes de iniciar o meu curso? (E, já agora, que critérios seriam esses? Qual a sua validade? Qual a validade do gosto de uma pessoa que nunca se debruçou sobre a arquitectura?).

Eu concordo com ambas as visões. Parece demasiado demagógico e simplista, mas não é como o caso daquele em que um diz 2+2=4 e outro 2+2=6, virando eu com a minha genialidade moderadora dizendo que não pessoal, vamos dialogar, digamos 2+2=5 e ficamos todos felizes. É antes como o padre João Seabra costuma dizer, assumir o paradoxo até ao fim, assumindo todas as características aparentemente contraditórias de um único facto como verdadeiras e admirando o constante paradoxo da vida.

Tive um professor que dizia que “A arte é para estúpidos”. E é, a arte fala-nos das coisas tão essenciais e tão universais que a todos diz respeito. Mas outro nosso amigo sempre que se lhe ouvia esta frase entrava em parafuso, e não sem razão. A sensibilidade educada é necessária para compreender e admirar certas obras mais difíceis.

A questão resolve-se no assumir uma cultura. Um problema. Uma ideia. Não formal, estilística ou metafórica, mas uma ideia de Vida. A arquitectura é expressão de vida humana na acção concreta do quotidiano, e deve o arquitecto ler e compreender o corpo e espírito deste quotidiano cuja arquitectura vai possibilitar. Corpo, ou seja, carne, matéria, problemas directos e pragmáticos, sons, programas, ventos, sol, térmica, ergonomia humana ou animal. Mas também espírito, ou seja, alma, personalidade, desejo, afirmação do “significado do programa”, ou seja, quando uma casa faz o seu habitante querer viver nela, quando uma escola induz o aluno a estudar, quando uma igreja nos dá vontade de nos sentarmos um pouco e escutarmos o silêncio (“essa ausência mais forte do que a presença”), quando um recinto desportivo dá vontade de pegar numas chuteiras e dar à bola. A isto se chama Morada e é este o primeiro objectivo de qualquer arquitecto.

Estou a falar idealmente, mas devemos pensar também que todos nós fazemos isto, conscientemente ou não. Mas então o que é uma boa arquitectura, será a dos rocócós, ou a das linhas e planos? Será que a vida é simplesmente uma colectânea de paradigmas escolhidos arbitrariamente, e que estamos num simplesmente por acaso, poderíamos bem estar noutro completamente diferente e chamar-lhe verdadeiro na mesma? Eu não acredito em tal coisa. É demasiado esquerdista para mim. E mentiroso também, pois a realidade não o afirma. Quando olho para o mundo, vejo em todos os homens um desejo de liberdade e de amor que é comum a todos, independentemente de todos os outros factores e censuras que cada um tem na sua sina, e não me venham dizer que amam coisas diferentes, eu não acredito. O que me interessa é precisamente ver o que a arquitectura realmente diz, faz fazer, incita, o que acolhe e o que afasta, a essência que é totalmente dependente da forma, mas lhe é outra coisa. Pode ser uma “villa romana”, conceito que usamos para designar um “tipo” de casa, ou alma, como eu prefiro. Enquanto que teatro é programa, anfiteatro grego é arquétipo com personalidade definida e clara.

Arquétipos. E quando se escolhem os arquétipos perfeitos para a situação dada, pois podem ser mais que um ao mesmo tempo, e quando se reinterpretam segundo as condicionantes do lugar, do programa, da nova sociedade e da cultura, nunca poderá surgir uma arquitectura do passado, ela nunca será “antiga”, nesse sentido, mas sim “presente”, moderna, ou então eterna.


Para finalizar, como exemplo máximo de modernidade e tradição juntas com a harmonia simples de quem quer simplesmente Construir (que em alemão deriva da mesma palavra que Habitar, como Heidegger ensinou), mostro-vos algumas imagens de um dos edifícios modernos mais belos, na suíça, em Vals. Eu sei, é batido demais, seria sempre mais interessante buscar coisas menos vistas, mas não resisto sempre que desenho algo tento sempre recordar a sua metodologia, a sua forma de ver. São umas termas de luxo, construídas dentro de um complexo hoteleiro e no sopé de uma montanha branca no topo, perto do vale. Parece fria e “caixuda” ao primeiro lance visual. Mas não. Reparem bem, o edifício não é nada mais do que umas Termas Romanas, com a mesma espacialidade, som, eco, atmosfera, materialidade. É uma interpretação fenomenal da Tradição, sem fugir à modernidade. Onde estão as cornijas? Onde estão os arcos de volta perfeita (circulares)? Onde estão as cerâmicas? Não estão. Porque estas Termas Romanas são Suíças, do século XX e falam também de outras coisas, como a Espeleologia, a Geologia: é um afloramento rochoso que sai da montanha e que acolhe uma gruta pela qual entramos, na escuridão total, na dimensão de um corredor claustrofóbico. Há tempo para a escala subir, frestas de luz entram, o som aumenta de reverberação, a estrutura torna-se mais racional. Saímos das cavernas para entrar numa Arquitectura. E dá vontade de tomar banho.

Fica a promessa de procurar mais exemplos. E desenvolvê-los mais.

Comments:
Louis Khan...quem sabe?!
 
exactamente, muito bem lembrado! As três lições fundamentais de Khan, agora não mas lembro de cor, (como era? o que é uma instituição humana, o que é o programa, o que é a forma dessa instituição? Não me lembro mesmo...)

Obrigado pelo àparte.
 
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