domingo, novembro 06, 2005

 

O embuste da arquitectura

Olá caro leitor. Sei que és raro e possivelmente até um só, um espelho meu, mas dedicar-me-ei a ti independentemente do número que fores. Não te proponho para seres o meu diário que para isso não tenho pachorra, mas confio-te os meus pensamentos mais pessoais e bizarros, não tanto os íntimos que não são para aqui chamados.

Encontro-me neste momento num dos momentos porventura mais vazios da minha vida. Com um estágio em suposta busca, e uma cadeira chatérrima para concluir, apetece-me apenas dormir. E no entanto, seria suposto que um aluno que acaba de tirar um 17 a projecto de quinto ano começasse a vida à maior velocidade possível. Este começo de ano foi-me tão imprevisto quanto insípido.

No entanto tenho algumas entrevistas marcadas, o que me faz questionar não só o tipo de perguntas que me farão, mas sobretudo, o que irei eu responder? Com tão pouca actividade mental (e física) na arquitectura, tenho algum medo de as minhas convicções arquitectónicas se decaírem num descrédito e enfado, e pior, que tal se note. Neste espaço propunha-me ensaiar tais perguntas e tais respostas, se mo permitires, meu caro.

Bem, começo por dizer que adoraria que me perguntassem "o que entendes por Arquitectura", nada mais filosófico e vazio do que semelhante pergunta, na qual poderia levar a cabo toda a minha desenvoltura retórica. O meu único medo seria que em tal momento tão esperado em toda a minha vida desde o curso (que me fizessem tal pergunta "final"), me surgisse um pensamento mais cruel e sarcástico de gozar com tamanha efemeridade, respondendo que é "uma profissão que goza de bastante prestígio social, chique por assim dizer, de bom dinheiro e mesmo que não, pelo menos uma óptima dica para engatar gajas de algum gabarito, no mínimo tamanho 42b."

Ora, sendo que outra alternativa pouco aconselhável seria replicar que tal pergunta é "demasiado retórica", negando-me condignamente a responder, (usando semelhante critério para todas as perguntas que achar difíceis de responder - no fundo todas as que pedirem mais do que um "sim" ou um "não"), a solução teria de passar por uma boa síntese da confusão que reina na minha cabeça. Mas para isso tenho de passar primeiro por um "brainwash", e tu, caro leitor, és a minha cobaia de tal experiência, até te fartares claro está.

Arquitectura, Arché (αρχή = primeiro ou principal) e tékton (τέχνη = construção)

"Arquitectura é a arte de construir o meio ambiente habitável." Esta "arte" define todo o processo construtivo que é encabeçado pelo arquitecto, e define-se por uma mestria na organização espacial, funcional, estética, social, territorial (urbana ou rural) e até construtiva do chamado objecto arquitectónico.

No entanto, não é somente uma técnica apurada por um técnico. Aquilo que mais chateia o pessoal não-arquitecto é a componente dita "estética" da arquitectura, que parece merecer mais tempo perdido para o arquitecto do que propriamente o seu "verdadeiro trabalho, que são as plantas, as maquetes e os cortes". Mas porquê? Não é melhor vivermos num ambiente mais belo do que Massamá ou do que o Cacém? Precisamente porque o gosto está em questão. Numa ânsia da arte arquitectónica estar a par das outras "artes", a experiência modernista e pós-modernista continua em grande forma e, pior que isso, deixa um rasto de mesquinhices de desenho para trás da "crista da onda" nefasta e prejudicadora para a imagem social da profissão.

O problema reside, como é óbvio para mim, na distinção forçada entre o "Belo" e o "Verdadeiro", ou seja, entre a coisa real, verdadeira e a coisa bela, estética. Anteriormente unas, a Arte era simultaneamente verdadeira e bela (ou a isso aspirava). A dado momento da História, a experiência estética faz a sua rebelião contra a demagogia de quem "possui" a verdade (a religião, o poder conservador) e insurge-se até contra ela!, criando uma guerra de valores conhecida entre nós de Iluminismo e mais tarde Modernismo. A Estética deixa de ser um instrumento da Verdade (para comunicar a verdade) para passar a ser um instrumento para descobrir a Verdade (eternamente escondida, eternamente em redefinição, um mito para todo o sempre).

Com Einstein, vejo que as pessoas interpretaram (e mal) a sua ciência na arte e na arquitectura ao aclamarem a rebelião total: não há verdade absoluta, cada um à sua verdade e à sua arte. A arte deixa de ser, como também já cheguei a escrever, expressão de um povo e da sua aspiração à verdade de um modo social e comum - em que cada um revela como vê a verdade comum com o seu temperamento particular, para se tornar expressão fragmentada e individual - em que cada um fala da sua verdade particular.

As características discursivas e dialogantes da arte subvertem-se e trocam de lugares! Hoje, o grande crítico de arte, o consumidor-tipo de arte não é cristão nem ateu, é agnóstico e tanto aceita todos os pontos de vista em geral como nenhuns em particular, aceita-os como os pontos de vista dos outros. Ora para que tal pessoa se possa rever numa arte, só existe uma maneira: a de criar a sua. Numa sociedade de milhões, tantos milhões de artistas: a democratização em massa da arte - a nivelação total da arte. Qual Dalí, qual Picasso qual quê! Eu, EU faria não só tão bem, como até nunca faria TÃO MAL! (a minha visão, única como é, será sempre melhor que as restantes, pois é a minha...)

A arte está então a fragmentar-se totalmente. Para quê um arquitecto então? Ora precisamente a questão volta a fechar-se num círculo. É que sem uma visão comum a todos, ou a uma maioria, qual é a relevância do seu desenho para a sociedade em geral? E não só isto me parece como verdade (eu que acredito numa verdade superior e independente da "minha"), como também vejo a sua consequência natural e simples: o corporativismo do que é "arte", que deixando de ter significado apoiado em algo fora de si - l'art pour l'art - passa a valer pelas premissas e valores da elite arquitectónica que comanda a onda. A arquitectura transforma-se numa moda, o ambiente habitado transforma-se numa moda - ou seja - todos os valores estéticos pelos quais se regem a qualidade estética do nosso meio ambiente artificial são tendencialmente arbitrários e obrigatórios!

Mas dado que definimos o embuste da arquitectura presente, como definir o que é eterno na arquitectura? Fica para a próxima caro leitor, que já me enfado de pesar os meus dedos neste teclado tão duro!!
Abraços

Comments:
Interessante este texto. Talvez as questões (muito relevantes) que colocas encontrem resposta na tal definição de arte que é um conceito antigo (para Platão arte era a verdade, a verosimilhança). Esse conceito tem evoluído e, hoje em dia, tem interpretações muito díspares. Estamos confusos.
Tudo isto corresponde no fundo à passagem da civilização ocidental à maioridade - ao acto de matar os pais - e ao tomar consciência de quem se é.
Mas atenção: não existe arte. Existem sim obras de arte...

obvious
 
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